Quem já leu minha resenha de Memórias Póstumas de Brás Cubas aqui sabe que não polemizo a questão de quem foi o maior literato brasileiro; nesse aspecto, fico com a maioria da crítica. Afinal, sejamos francos: é difícil tirar esse posto de Machado de Assis. Todavia, se me perguntassem qual autor brasileiro que mais gosto de ler, aí talvez a resposta surpreenderia um pouco mais, pois esse posto é, sem dúvida, de Aluísio Azevedo.
Com estilo próprio de escrita e sempre ostentando um enredo cativante, Azevedo encarna tudo aquilo que admiro num clássico. Nele, encontramos complexidade linguística na medida certa a fim de dar profundidade ao roteiro e aos personagens, aliada sempre a uma temática descritiva do senso comum real, cotidiano, aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “a vida como ela é”. Seu texto de maior envergadura ‒ ou, ao menos, de maior sucesso ‒ foi O Cortiço, livro de 1890 onde ele revela toda sua verve naturalista e sua percepção acurada da realidade popular.
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Muitas críticas especializadas já foram feitas a essa obra desde o seu lançamento, e minha intenção aqui não é puramente disputar espaço nem razões com elas, mas antes trazer observações que julgo pertinentes sobre o livro e suas interpretações, bem como destacar nele, a priori, um quadro sincero de um observador social perspicaz, e não meramente a pena cortante e julgadora de um crítico social transformado, pela crítica especializada, em um espécime estranho de marxista militante.
A trama se desenvolve a partir de João Romão, um português ambicioso e capaz de fazer dinheiro por meio de trapaças, autossacrifícios e engenhosidades mais; e Bertoleza, escrava que, enganada, acredita ter tido sua liberdade comprada por Romão, e com ele vive como esposa amigada trabalhando de sol a sol tal como quando era oficialmente escrava. Ambos são responsáveis pela construção de um cortiço que dá de muro com a casa do empresário aristocrata Miranda, que, entre afagos e brigas, disputa status e dinheiro com Romão. Mas isso é apenas a geografia local do ambiente onde o livro crescerá e dará frutos. Ali, nesse espaço construído por esses três personagens, mais de 90% da obra irá se desenrolar.
Após a construção do cortiço, surge na obra um número grande de personagens, todos com complexidades próprias, modismos, opiniões, jeitos de se portar, vestir e pensar se entrelaçam na trama de Azevedo sem se confundirem nem se mesclarem. A genialidade do autor em criar tantos personagens sem perder-se em suas especificidades, nem banalizar a história de fundo, é algo que poucas vezes vi na literatura mundial. A sagacidade com que Azevedo cria cada ente do romance chega a ser chocante, dado o número de personagens, mas também pela complexidade de cada um. Eles parecem pular dos livros tamanha a factualidade de suas ações e pensamento. Poderiam bem ser um tio desconhecido, uma vizinha nova obscura, um primo distante ou uma moça do caixa da padaria. Repito: poucos autores clássicos têm essa competência.
Excetuando Miranda, Romão e Bertoleza, segue abaixo alguns dos principais personagens da obra:
- Estela: esposa de Miranda, uma mulher infiel e insatisfeita com o marido;
- Jerônimo: operário português, trabalhador honesto, que se envolve com Rita Baiana e muda seu comportamento;
- Piedade: esposa de Jerônimo, sofre com a transformação do marido;
- Rita Baiana: mulher sensual e festeira, que desperta desejo nos homens, especialmente Jerônimo e Firmo. Nela está o volante da obra;
- Firmo: capoeirista valentão, ciumento e amante de Rita Baiana. Rival de Jerônimo;
- Pombinha: jovem que inicialmente é pura e ingênua, mas acaba sendo seduzida pela vida leviana e sexual. É o plot twist do livro;
- Dona Isabel: mãe de Pombinha, tenta proteger a filha;
- Leandra (Bruxa): mulher fofoqueira e maldosa, mãe de Albino;
- Albino: filho de Leandra, tímido e afeminado;
- Alexandre: policial que tenta manter uma sobriedade de vida enquanto posa com seu uniforme em busca de status local;
- Henrique: jovem influenciado pela vida no cortiço e que se torna um libertino; e
- Bruno e Marciana: casal que vive brigando violentamente.
Além desses, existem mais personagens que deixei de fora por mera questão de espaço. Percebam que, na trama, todos eles formam uma espécie de colcha de retalhos que dá fundamento a uma visão social da época. No O Cortiço, vemos a defloração de uma realidade que, no romantismo, era ignorada ou contada com vistas a um idealismo ultra virtuoso ou ultra pecaminoso, a qualidade da exatidão linguística de Azevedo — o que para muitos não passava de vulgaridade — é trazer para a superfície as belezas e as podridões humanas; e, ao contrário do que diz Antonio Cândido em seu texto De Cortiço a Cortiço, para mim é claro que a crítica mais profunda de Azevedo não é ao “acúmulo de capital” de Miranda e Romão, nem à soberba de status de ambos os personagens. Azevedo, mais do que buscar criticar nas entrelinhas, expõe o fato como ele é sem interesses políticos. O Cortiço não é um ensaio sociológico, mas um romance de época que traz em seu seio a exposição fria da realidade observada pelo autor. Entretanto, assim como Cândido, outros críticos fizeram de Rita Baiana, por exemplo, uma expoente do feminismo nacional. No entanto, me parece que Rita era simplesmente uma mulher de seus dias, que não se importava com modos morais gerais nem com o julgamento social à sua volta, mas isso não faz dela uma paladina política.
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Se minha intenção fosse torcer o texto até que dele vertesse uma crítica conservadora, eu bem que conseguiria, nele há inúmeras passagens onde fica clara a questão da degradação das tradições e a perda do sentido de moralidade privada e pública, bem como a impressão de que Azevedo está criticando firmemente tal desmanche. Mas interpretações de um texto não são verdades sobre um texto. E isso muitos críticos ignoram, infelizmente.
Em suma, O Cortiço não é uma bandeira ideológica, é uma miscelânea de realidades cruas, um tapete feito de diversos tecidos e por diversas mãos e realidades. Se Romão fosse um mero inimigo de classe, e Rita uma expoente de um protofeminismo tupiniquim, como explicar o fim degradante de ambos: uma presa numa relação meramente sexual, descrita, no fim, como uma mulher interesseira e vulgar, carregada por instintos e sensualidades, uma representação mesma de feminilidade fútil, quase tão objetificada como pombinha em seu prostíbulo; e Romão, que acaba numa encruzilhada moral, tendo de se livrar de Bertoleza em troca de uma ascensão social e de um casamento sem amor, ao mesmo tempo que sua consciência o acusa de hipocrisia e banditismo, fazendo de suas noites um inferno e da posição social almejada algo tão banal como a de qualquer pobre que ele esnoba.
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O livro é uma crítica social na mesma medida que é uma crítica moral. E com “crítica social” não quero dizer “crítica ideológica”, não confundamos a literatura com a política, pois o naturalismo, principalmente influenciado por Émile Zola — e do qual Azevedo é fruto —, tem por princípio expor a realidade como ela é a fim de gerar reflexões. E é aqui que está assentada a obra de Azevedo. Não há em O Cortiço heróis, há a miséria humana sendo explorada por vários ângulos, como o da cobiça material, da exploração humana, da degradação moral, da perda do sentido de virtude, da banalização das relações humanas, da sensualidade extrema como via de vícios e tristezas. Azevedo não está a serviço de uma crítica política — desculpem-me dizer-lhes. Ele está simplesmente expondo tudo em suas minúcias mais vergonhosas.
No fim, o livro é uma exploração estupenda e única do subterrâneo da realidade social carioca durante o segundo reinado; o olhar para o canto um tanto quanto ignorado pela literatura até aqueles dias. O Cortiço continua sendo, assim, o melhor e mais profundo livro do naturalismo brasileiro na minha humilde opinião, bem como a obra mor de Aluízio Azevedo. Uma descrição fidedigna da carcaça social, moral e espiritual do homem brasileiro daqueles dias. Leitura obrigatória a todos que se importam com alta cultura e literatura.
O post O Cortiço de Aluísio Azevedo: não é sobre política é sobre a degradação do homem apareceu primeiro em Revista Oeste.