Por William Douglas*
No final de março de 2025, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, revogou uma resolução que reconhecia práticas tradicionais de matriz africana — como banhos de ervas, defumações, chás, escalda-pés e ebós — como práticas complementares dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). A resolução havia sido publicada por duas secretarias municipais (Saúde e Meio Ambiente) e tinha como objetivo integrar saberes ancestrais ao atendimento público de saúde.
Sobre a população negra, vale registrar que esta é a cor predominante entre os evangélicos. Logo, quem teve a equivocada ideia de agregar tratamentos religiosos ao SUS, se fosse para ser coerente, também deveria ter chamado os pentecostais.
Felizmente, menos de uma semana depois, o prefeito revogou o ato, justificando acertadamente que o SUS deve se basear exclusivamente em práticas com comprovação científica. Paes reforçou que o Estado é laico, não devendo institucionalizar elementos religiosos dentro da política pública de saúde.
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A revogação gerou forte reação de entidades ligadas às religiões afro-brasileiras, que acusaram o prefeito de racismo religioso. Organizações anunciaram medidas judiciais e protestos contra a decisão, classificando o ato como um retrocesso e uma ofensa à diversidade cultural e espiritual do Brasil.
O papel do Estado laico
O episódio revela algo mais profundo: a dificuldade que muitos têm de compreender o papel do Estado laico e os limites da política pública em relação à fé. A verdade é simples: o ser humano é o ser humano, sempre. Independentemente de raça, cor, religião, orientação sexual ou qualquer outro marcador, todos — quando têm poder — correm o risco de abusar dele. A resolução revogada nada mais era do que uma tentativa de inserir práticas religiosas no sistema público de saúde, o que contraria frontalmente o princípio da laicidade do Estado. Sob certo aspecto, todos são “colonizadores” quando, em algum espaço, encontram poder para tanto.
Imagine o escândalo que seria se, em vez de banhos de ervas e defumações, o SUS anunciasse, como práticas complementares, as orações pentecostais ou a reza do terço católico. Certamente, os mesmos que agora criticam a decisão do prefeito estariam apontando o dedo, com razão, contra a tentativa de impor uma religião sobre as demais ou de dar prestígio indevido a uma crença específica dentro de um serviço que deve ser universal e científico.
O SUS é para quem busca tratamento baseado na medicina. Já o tratamento espiritual deve ser procurado dentro do espaço próprio de cada fé. Confundir isso é abrir a porta para favorecimentos indevidos, disputas ideológicas e, acima de tudo, a violação da neutralidade religiosa que deve reger a administração pública. As pessoas confundem as coisas.
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro há um espaço ecumênico com celebrações católicas, evangélicas e espíritas, cada uma no seu dia. Se alguma outra tradição requerer o uso de tal espaço, será, sem dúvida, atendida. Isso é exemplo de Estado laico. O que seria violação é admitir apenas uma tradição religiosa, ou proibir esta ou aquela, ou todas (como os defensores do laicismo francês gostariam).

O SUS e as religiões
Porém, imagine o SUS, que já tem problemas suficientes a resolver, passar a acolher para:
- o catolicismo: uso da água benta e procissões;
- os evangélicos: unção com óleo e campanhas de jejum;
- espíritas: passes, água fluidificada e cirurgias espirituais;
- umbanda e candomblé: banhos de ervas, defumação com ervas e resinas, ebós, oferendas aos orixás e consulta com entidades espirituais para diagnóstico e cura;
- o judaísmo: colocação de pedidos no Muro das Lamentações em nome de doentes;
- o islamismo: recitação do Alcorão, Ruqyah e jejum (em especial no Ramadã);
- o budismo: cantos e mantras de cura, rituais de purificação kármica e meditação;
- hinduísmo: mantras de cura e equilíbrio energético, rituais de fogo (homa), uso de ervas sagradas e ayurveda espiritual; e
- indígenas: bênçãos dos pajés, uso de plantas sagradas e rituais com fumaça, cantorias e danças com fins curativos e banhos de rio consagrados espiritualmente.
Também deveriam ser incluídos: cristaloterapia espiritual, curas por energização cósmica, círculos de oração com uso de instrumentos místicos e reprogramações espirituais.
Ao menos no Planalto Central e na Amazônia também precisaríamos prestigiar religiões tipicamente brasileiras, como a Comunidade Saraha, mais conhecida como a religião de santo daime dos extraterrestres, ou, mais precisamente, a União do Vegetal e o grupo chamado Vale do Amanhecer, que demandarão a construção, nas unidades do SUS, de tronos e pirâmides para as sessões de harmonização e cura espiritual. Teríamos que fazer licitações para adquirir as vestimentas específicas (capas, túnicas, faixas coloridas) associadas à identidade espiritual da pessoa e à missão cósmica, que se somam aos rituais coletivos de cura, com música, danças circulares e mantras. E, obviamente, o SUS também servirá a ayahuasca.
Assim, por isonomia, todos os rituais precisariam ser acolhidos, transformando o SUS em um super templo ecumênico, em vez de um espaço de ciência, universalidade e eficiência.
Portanto, a medida tomada pelo prefeito Eduardo Paes foi correta. Corrigiu um erro que feria o princípio da neutralidade religiosa do Estado e que instrumentalizava o sistema de saúde — o que é errado, qualquer que seja a tradição religiosa.
Quem diz isso é alguém que crê no poder da oração, mas sabe que não se pode misturar fé com políticas públicas: o Estado deve respeitar e até aproveitar bem a energia religiosa, mas sem perseguições ou favoritismos.
Não houve racismo religioso, nem exclusão, nem preconceito. O que houve foi um ajuste necessário, em respeito à Constituição, à ciência médica e à igualdade de tratamento entre todas as crenças. E, num país tão plural quanto o Brasil, isso não é apenas sensato — é indispensável.
*Professor de Direito Constitucional
O post Estado laico e medicina baseada em ciência apareceu primeiro em Revista Oeste.