Um dos maiores desafios de um resenhista, sem dúvida, é falar sobre aqueles livros dos quais muito já se tratou e encontrar neles alguma crítica original e digna de ser feita. Porém, nem toda resenha crítica necessariamente precisa ser estupendamente original, deve ser antes uma espécie de recálculo de rota, pois, ainda que as conclusões desse novo caminho sejam as mesmas do caminho anterior, a nova via recalculada pode trazer novas perspectivas e gozos.
Publicada originalmente em 17 de agosto de 1945, no final da Segunda Guerra, A Fazenda dos Animais (Animal Farm) — mais editorialmente conhecida aqui no Brasil por Revolução dos bichos —, de George Orwell, emergiu no cenário literário como uma sátira política que uniu a fábula e um conteúdo incendiário, desafiando os poderes ideológicos de sua época e a mídia amplamente endossadora da União Soviética no mundo ocidental naqueles dias.
Ou seja, num momento histórico em que a Segunda Guerra Mundial mal havia terminado, e a União Soviética gozava de prestígio como aliada na derrota do nazismo, Orwell ousou fazer o que poucos faziam: criticar abertamente o stalinismo e todos aqueles que censuravam, aplaudiam ou até defendiam o totalitarismo comunista da União Soviética.
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Sob o disfarce de uma parábola agrária, a obra narra a rebelião de animais de uma fazenda contra seus opressores humanos, apenas para, em seguida, instaurar uma tirania ainda mais brutal sob o comando dos porcos. O lema da obra é conhecido até mesmo por aqueles que jamais leram o livro: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. A frase, síntese irônica do autoritarismo que cresce sob a bandeira da igualdade, resume o núcleo crítico do romance: a traição dos ideais revolucionários e a corrosão do poder pelo poder.
A fábula por trás de A Fazenda dos Animais
Tão profunda e basilar é a fábula de Orwell, que muitos se esqueceram do prefácio assustadoramente atual ao Ocidente, e em especial, ao Brasil. Denominado The Freedom of the Press [A Liberdade de Imprensa], e publicado como ensaio para o The Times Literary Supplement, postumamente, em 15 de setembro de 1972, o texto havia sido escrito em 1944 para ser o prefácio de A Fazenda dos Animais, mas foi suprimido pelos editores, pois era altamente crítico à União Soviética. No texto, em vário momentos ele foi profético, como quando afirmou que a censura no Ocidente de seus dias “era em grande parte voluntária”. Sobre as desculpas para a censura e a ditadura, na parte final do ensaio, ele parece falar para o Brasil de 2025:
Além da conhecida alegação marxista de que a “liberdade burguesa” é uma ilusão, há agora uma tendência generalizada de argumentar que só é possível defender a democracia por meio de métodos totalitários. Se alguém ama a democracia, diz o argumento, deve esmagar seus inimigos por qualquer meio que seja. E quem são seus inimigos? Sempre parece que eles não são apenas aqueles que a atacam aberta e conscientemente, mas também aqueles que “objetivamente” a colocam em perigo ao disseminar doutrinas equivocadas. Em outras palavras, defender a democracia envolve destruir toda a independência de pensamento. (Tradução minha)
A Fazenda dos Animais vem sendo analisada apenas pelas vistas de um ataque literário à União Soviética, mas ela é bem mais. É um raio-x da estrutura argumentativa de toda e qualquer ditadura. E se hoje ela ainda faz sentido, aliás, se hoje, por vezes, parece até fazer mais sentido do que antes, é porque as estruturas que o texto revela são mais que denúncias temporais, mas antes, afirmações profundamente filosóficas sobre as entranhas do totalitarismo em suas mais diversificadas facetas.
Orwell sofreu para conseguir publicar o livro
Orwell enfrentou grande resistência para publicar sua obra. Várias editoras britânicas recusaram o manuscrito por temor de represálias políticas — temia-se que criticar a União Soviética naquele momento fosse uma espécie de heresia geopolítica, já que o Reino Unido havia se aliado a Stálin para enfrentar os nazistas. Foi apenas pela intervenção do poeta conservador T.S. Eliot, então editor na Faber & Faber, e do pequeno selo Secker & Warburg, que o texto finalmente chegou ao público.

A estrutura fabular do romance é deliberadamente simples. Orwell recorre à linguagem direta e ao simbolismo transparente — os porcos Napoleão e Bola-de-Neve, por exemplo, representam figuras como Stálin e Trótski. Mas, sob essa superfície infantil, corre uma correnteza amarga.
A progressiva deformação dos ideais de liberdade e justiça espelha o curso histórico da Revolução Russa, de 1917 até os expurgos sangrentos dos anos 1930. Justamente por essa clareza que muitos críticos denotam o sucesso posterior do texto, outros ainda falam da estrutura quase infantil da alegoria. A mim parece claro que se trata de uma fusão de linguagem simples, enredo envolvente e mensagem moral cara; até um adolescente distraído do Brasil entende, por exemplo, o que quer dizer a imagem final da obra, onde os porcos estão sentado à mesa com os humanos que juravam odiar.
Isto é, o ensaísmo do romance se expressa menos na forma e mais na sua função: A Fazenda dos Animais não é apenas uma história moral — ainda que o seja de forma evidente —, mas um comentário político e incisivo sobre a maleabilidade da verdade sob regimes totalitários. A reescrita das regras no celeiro, a manipulação da memória coletiva dos animais e a vigilância constante são mecanismos familiares aos leitores do século 20 — e assustadoramente reconhecíveis ainda hoje.

Quase 80 anos depois de sua publicação, o texto permanece atual, como um espelho desconfortável não apenas da política soviética, mas de toda forma de poder que se legitima pela mentira, pela opressão da dissidência e pelo judicialismo da política popular. A precisão com que Orwell desmascara a lógica do autoritarismo torna a leitura de A Fazenda dos Animais quase pedagógica para os adultos e jovens e um conto envolvente para as crianças: é um manual moral em forma de fábula, uma anatomia da opressão com linguagem acessível e contundência filosófica.
Mais que uma crítica ao stalinismo, Orwell escreveu um tratado sobre os ciclos viciosos do poder — e sobre como revoluções podem devorar seus próprios filhos sob a promessa de um amanhã igualitário. Ao final, A Fazenda dos Animais permanece como uma obra incômoda porque revela, em termos claros demais para serem ignorados, que a liberdade exige vigilância constante, coragem heroica e homens e mulheres com brio para praticá-la, reafirmá-la e defendê-la — e que, às vezes, os porcos já estão entre nós, usando de palavras bonitinhas como “igualdade” e “democracia” para domar Fazenda Brasilis.
O post A Fazenda dos Animais — uma denúncia do totalitarismo que nunca envelheceu apareceu primeiro em Revista Oeste.