Apesar das afirmações otimistas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a redução da fome no Brasil, os dados mais recentes pintam um cenário diferente e bem preocupante. A crise afeta desproporcionalmente regiões como o Norte e o Nordeste, onde 7,7% e 6,2% dos lares, respectivamente, enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave. Mesmo em regiões mais desenvolvidas, como Sudeste e Centro-Oeste, os índices não são insignificantes: 2,9% e 3,6%, respectivamente. Na ponta oposta, o Sul do Brasil apresenta o menor porcentual, com 2% dos lares nessa condição — uma disparidade que evidencia as desigualdades regionais do país.
Embora o porcentual geral de lares sob insegurança alimentar tenha recuado para 27,6% em 2023 (depois de atingir um pico de 36,7% entre 2017 e 2018), ainda estamos distantes dos números registrados em 2013 (22,6%). Esse retrocesso de uma década levanta questões sobre a eficácia das políticas públicas e econômicas em um contexto de aumento da pobreza e desigualdade. O aumento do preço dos alimentos tem sido um dos principais agravantes da insegurança alimentar. De 2019 a 2022, enquanto o IPCA acumulou alta de 21,7%, os alimentos subiram 37,5%, o que impactou em especial as famílias mais pobres.
Para Elton Gomes, cientista político e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o contexto fiscal do país influencia diretamente o índice de famílias que passam fome. “O desmantelo das contas públicas e o contexto fiscal ruim acabam gerando inflação e impactando diretamente os preços dos alimentos”, afirmou o cientista.
A inflação afeta de maneira desproporcional as populações de baixa renda, que gastam a maior parte do orçamento em alimentos. Isso é particularmente visível no Norte e no Nordeste, onde a renda média é mais baixa e a informalidade do trabalho é mais alta. Isso dificulta ainda mais o acesso a uma alimentação de qualidade.
Mesmo o Brasil sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, grande parte da produção agrícola é voltada para a exportação. Produtos como soja e café, destinados ao mercado externo, deixam o mercado interno vulnerável às flutuações dos preços globais.
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O exército de dependentes
Em novembro, o governo Lula divulgou que o Bolsa Família havia crescido em 2024, passando a contemplar mais de 54,3 milhões de brasileiros. Contudo, a ampliação do benefício, cujo valor médio de repasse é de R$ 681,22, gerou diminuição na busca por emprego, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), divulgado em setembro.
A instituição constatou que o Norte e o Nordeste são os locais mais impactados pela falta de mão de obra no mercado. Especialmente entre mulheres, jovens e trabalhadores com nível mais baixo de qualificação.
Coordenado por Daniel Duque, mestre em ciências econômicas pela UFRJ e pesquisador do FGV Ibre, o estudo utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, que identificou o decréscimo da busca ativa por emprego nas duas regiões.
Essas áreas do Brasil têm a maior proporção de domicílios com ao menos um beneficiário do Bolsa Família. O Nordeste lidera com 35,5%. Já o Norte tem pouco menos de um terço, ou 31,7%, no total. Enquanto alguns simplesmente não conseguem ter acesso ao Bolsa Família e chegam a passar fome, o governo federal mantém quase um quarto da população de todo o país sujeita ao seu auxílio para ter o que comer.
Esse número de dependentes do Estado equivale a mais da metade do número de pessoas aptas a trabalhar no Brasil, que chega a 100 milhões de cidadãos.
Nesse exército de beneficiários, muitos poderiam se tornar produtivos, mas preferem burlar o sistema. O empresário pernambucano Djalma Cintra Junior, que atua nos setores de construção civil e varejo, afirma que o mercado de trabalho no Estado tem muitos casos de informalidade. Segundo ele, há muitos trabalhadores que até possuem uma ocupação, mas evitam qualquer tipo de vínculo formal para continuarem usufruindo do benefício do governo.
O mesmo ocorre em um dos setores mais prósperos do país, o agronegócio. O produtor rural Ricardo Arioli, do Estado de Mato Grosso, afirma que está difícil encontrar trabalhadores para a pecuária e a lavoura. E, mesmo que encontre pessoas dispostas a trabalhar, a rotatividade aumenta a cada safra, apesar dos benefícios oferecidos. Arioli destaca o fato de os salários no meio rural estarem acima da média das cidades.
Ele acredita que as pessoas preferem ficar na cidade fazendo “bicos” e continuar recebendo o auxílio do governo a ter de trabalhar em tempo integral. “Muitos até pedem para não assinarmos sua carteira de trabalho, pois o vínculo formal os faria perder a ajuda. Mas não damos essa possibilidade”, destaca Arioli. Ele diz que busca perfis em agências de emprego e chega a anunciar as vagas em rádios locais. Mas que nem isso é suficiente para a alta demanda de mão de obra no agro.
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Programas envelhecem
O economista Alexandre Pires, professor de economia do Ibmec São Paulo, afirma que o valor do benefício que essas populações recebem do governo acaba sendo competitivo com os salários oferecidos pelo mercado.
“Obviamente, o salário que a economia real pode pagar é baixo”, observa Pires. “Como o Bolsa Família consegue competir com esses valores, as pessoas muitas vezes optam por se manter na informalidade para não perder o benefício.”
Para o economista, a única maneira de reverter esse processo seria um aumento do nível de riqueza. Isso exige aumento do capital fixo, do nível de competências (o capital humano), além de investimentos e estruturas. “Esse processo é longo e só é possível se essas regiões conseguirem produzir bens que tenham valor de mercado”, pondera Pires, lembrando que um bom começo para o processo de desenvolvimento é, de modo geral, o setor agrícola.
Ph.D. em economia, Igor Lucena acredita que o Bolsa Família é um excelente programa para essas regiões mais pobres. “Mas me preocupa muito o fato de um quarto da população depender desse auxílio, que gera gastos de mais de R$ 170 bilhões à União”, calcula.
Segundo a avaliação de Lucena, se o programa continuar crescendo, o Brasil vai ter mais pessoas recebendo o Bolsa Família do que gerando riquezas. Ele acredita que o ideal para equilibrar essas contas seria a implementação de uma análise da situação de emprego nas regiões. “Não é só dar o dinheiro; é preciso averiguar se estão sobrando vagas de emprego nas localidades onde os cidadãos recebem o dinheiro. As pessoas aptas têm de ser convocadas a trabalhar.”
O economista diz ainda que é preciso haver controle e comunicação entre empresas, setores de empregabilidade e o Ministério do Trabalho. “A existência de pessoas com capacidade de trabalhar, mas que não trabalham porque vivem do Bolsa Família, é algo que desvirtua totalmente o programa de baixa renda”, analisa Lucena. “Nenhum programa, nenhuma empresa e nenhum sistema existem sem atualização. Eles ficam velhos e se tornam ineficientes e caros para todo o sistema.”
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Salvador, Recife e João Pessoa
O Mapa da Desigualdade, divulgado em março do ano passado pelo Instituto Cidades Sustentáveis (ICS), mostrou que, das 16 capitais do Norte e do Nordeste, 15 possuem os piores indicadores sociais do Brasil. De acordo com o estudo, os Estados situados nas duas regiões são também os que menos investem em melhorias para o desenvolvimento global da população. A pesquisa levou em conta dados sobre saúde, educação, moradia, renda, violência e saneamento para avaliar 40 indicadores sociais nas 26 capitais brasileiras. O órgão concluiu que a capital de Pernambuco, Recife, tem o segundo pior desempenho em todas essas áreas. A cidade perde somente para Porto Velho, em Rondônia, que lidera o ranking nacional de pior desempenho.
Com relação ao grau de miserabilidade da população, o ICS constatou que Salvador tem a maior proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo a pesquisa, 11% da população da capital baiana sobrevive com menos de US$ 1,90 por dia (cerca de R$ 11,40). Além disso, a cidade amargura as mais altas taxas de crianças desnutridas do país (4%) e também de pessoas desocupadas (16,7%).
No início de dezembro de 2024, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que outra capital nordestina, João Pessoa, na Paraíba, possui a maior concentração de renda do país. Se em 2010 a cidade era a nona capital mais desigual do Brasil, em 2023 a discrepância entre ricos e pobres só piorou.
De acordo com dados do índice de Gini do ano passado, 7,4% dos paraibanos, ou cerca de 300 mil habitantes, vivem em situação de extrema pobreza, com menos de US$ 2 por dia (R$ 12). Quase metade dos moradores de João Pessoa, 47,4%, vive abaixo da linha de pobreza, definida por um rendimento diário de US$ 6,85 (R$ 41).
Exemplo prático
Desde o início da pandemia da covid-19, em 2020, o pastor evangélico Mário Belarmino se viu diante de um enorme desafio. Fiéis da sua igreja, no bairro do Pina, no Recife (PE), começaram a perder empregos e fontes de renda. Logo, ele promoveu mutirões para arrecadar e doar cestas básicas e distribuir sopa para os membros do templo. Como consequência do lockdown, eles não tinham mais dinheiro para se alimentar.
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Quatro anos depois, boa parte dos membros da congregação conseguiu, de alguma forma, se refazer financeiramente. Mas outra parcela da população parece ter ficado ainda mais pobre, segundo relato do pastor. São, por exemplo, as famílias que moram nas palafitas — barracos construídos sobre estacas para proteger a estrutura de inundações. Essas favelas, às margens do Rio Capibaribe, ficam na zona sul da capital pernambucana e perto da igreja Batista.
O projeto de distribuição de alimentos ajuda, hoje, cerca de cem famílias que moram nessa área de risco. “São pessoas em situação de miserabilidade extrema, que encontram em um prato de sopa com pão a única refeição do dia para sua família”, relata Belarmino. “Começamos distribuindo a sopa aos sábados, mas muitos passaram a pedir para levar mais um pouco de comida para casa, e assim garantir ao menos uma alimentação para os filhos no domingo.”
Diante da carência dessa comunidade, o pastor buscou apoio de amigos para fornecer também um café da manhã aos domingos, além de um lanche da tarde para as crianças. “Eles chegam à igreja famintos; é impossível ver essa situação e não oferecer socorro.”
Belarmino descreveu algumas situações alarmantes nessas comunidades, como habitações onde não há sequer um colchão para as pessoas dormirem. “Vi uma criança com os dedos feridos por causa de mordidas de ratos, que invadem os barracos durante a noite. Ela, seus pais e irmãos dormiam sobre tábuas, no chão”, descreveu o pastor.
“As pessoas reclamam da violência nas ruas. Mas não é uma violência gigantesca deixar que humanos sejam expostos a situações de miséria como essas?”, questiona Belarmino.
Ele conta que percebeu um aumento expressivo da pobreza naquela comunidade. “A situação está ainda mais complicada hoje do que na pandemia”, diz o pastor. Mário Belarmino explica que muitas famílias perderam, no último ano, o benefício do Bolsa Família, mas não sabem explicar o porquê. Outros, por falta de documentação, jamais se cadastraram para ter acesso ao auxílio do governo.
O post A mentira da fome apareceu primeiro em Revista Oeste.