Brasil, o país do algodão

Ciência, tecnologia e atenção às exigências do mercado — esse tripé fez os agricultores do Brasil transformarem uma tragédia em oportunidade. A praga do bicudo-do-algodoeiro devastou a produção nacional de algodão na década de 1990, fazendo do país um grande importador desse produto. Porém, o agro nacional não ficou inerte e correu atrás do prejuízo.

Os agricultores buscaram soluções ao redor do mundo, o que fez as lavouras locais ganharem uma nova face, muito mais tecnológica. Em uma surpreendente virada de chave, o agro nacional se tornou um grande exportador da pluma — em fibra, quase igual àquele vendido nas farmácias.

Em 2024, o país liderou o mercado mundial, com embarque de 2,8 milhões de toneladas. O número superou, inclusive, os Estados Unidos — nação com a safra mais volumosa do planeta. É verdade, porém, que irregularidades climáticas atrapalharam o cultivo norte-americano neste ano. Entretanto, a agricultura brasileira fez a lição de casa, venceu desafios e se consolidou como umas das mais importantes fornecedoras mundiais da pluma.

O ritmo de crescimento acelerado deixou a indústria de tecidos para trás. As fábricas não conseguem ter a mesma competitividade do campo, fazendo o país vender para fora quase 75% da colheita.

Acabando com a praga no algodão

O bicudo-do-algodoeiro é um besouro preto, e seu nome se dá em razão de sua cabeça prolongada em forma de bico. A reprodução do inseto ocorre por meio de larvas, que são depositadas justamente onde nascem as plumas e os caroços do algodão. Nessa fase, essas lagartas se alimentam da planta, devastando a produção. 

Marcio Portocarrero, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), explica como essa história aconteceu. “Há 25 anos, os brasileiros resolveram reintroduzir o algodão no país”, diz o agricultor. “Eles saíram mundo afora, e foram ver na Austrália, nos Estados Unidos o que se fazia para ter estabilidade na produtividade, na produção e saber o que se estava usando de insumo.”

De acordo com Portocarrero, esse processo fez o setor mudar radicalmente. A colheita, por exemplo, passou de manual para mecanizada. O plantio deixou de ser feito em pequenas áreas, principalmente em São Paulo, para ocupar grandes áreas no Mato Grosso e na Bahia. E os agricultores ganharam uma aliada fundamental contra o bicudo: a transgenia — a tecnologia de adaptar as plantas geneticamente.

Atualmente, cerca de de 80% da safra nacional tem origem transgênica, tecnologia liberada no país a partir de 2005. A introdução da técnica contou com a parceria da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Além de ajudar a combater a praga, seu uso trouxe um imenso ganho de produtividade, com a colheita passando de pouco mais de 1 tonelada por hectare para quase 2 nesta mesma porção de terra. Praticamente o dobro da média norte-americana. E com uma outra grande vantagem: a de consumir muito menos água que em outros países.

“Por volta de 98% do algodão brasileiro é obtido em área de sequeiro, sem irrigação”, relata o diretor da Abrapa. Nosso clima possibilita isso. Enquanto isso, 60% do algodão dos EUA é irrigado e, do australiano, 100% é irrigado. E aí entra em outro fator que é a preocupação do mundo com relação à água, com relação à destinação da água para alimentação animal e humana, e não para a agricultura. Hoje o Brasil é muito mais sustentável.”

Quem compra é o cliente

Sustentabilidade é outra palavra-chave para o crescimento da lavoura de algodão no Brasil. O crescimento da produção depende de mercado para absorvê-la. O aumento da quantidade de clientes ocorreu conforme o atendimento  a critérios ambientais e sociais impostos pelo mercado externo passou a ser certificado por órgãos internacionais. 

Para isso, a Abrapa estabeleceu convênios com órgãos como a Better Cotton Initiative (BIC), com sede em Genebra, na Suíça. Essa instituição é mantida por grandes marcas com presença global, como Adidas, Nike e Calvin Klein. Hoje, cerca de 80% das fazendas do Brasil são certificadas e 45% de todo o algodão certificado que circula no mundo é produzido por elas. Além disso, por volta de 60% da colheita nacional é da pluma de alto padrão, capaz de atender os mercados mais exigentes. 

Todavia, se por um lado o Brasil é o maior exportador de algodão do mundo, do outro a indústria brasileira enfrenta um grande desafio: transformar essa matéria-prima em tecido antes de vendê-lo no mercado externo. A mesma competitividade do campo não é vista na roça — e os motivos para isso estão dentro e fora de nossas fronteiras. 

Competição desleal

Para Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), essa deficiência se sustenta especialmente em dois pilares: o custo Brasil e a falta de competitividade sistêmica do país.

O custo Brasil chega a R$ 1,7 trilhão por ano, quase 20% do Produto Interno Bruto (PIB). O indicador, obtido pelo Movimento Brasil Competitivo, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, é resultado de um conjunto de entraves que oneram o ambiente de negócios nacional.

“Isso advém de insegurança jurídica, de infraestrutura ruim, taxa de juros e de uma série de elementos que oneram a produção brasileira e que têm feito do Brasil um país mais caro perante seus concorrentes”, destaca Pimentel.

Atualmente, a manufatura têxtil nacional compete principalmente com países como China, Paquistão, Bangladesh, Vietnã e Turquia. Pimentel reconhece a importância do empreendedorismo do agro brasileiro, mas defende a necessidade de que a indústria tenha um plano de investimentos, assim como é o Plano Safra para a agricultura.

“A agricultura tem tido um tratamento de política agrícola de muitos anos, com taxa de juros mais competitivas e com menor carga tributária”, afirma o executivo. “Nós não temos um Plano Indústria. Isso, sem dúvida nenhuma, é um elemento crítico para que a gente possa ter a indústria na sua centralidade, e a partir daí nós possamos ir desbastando esse Custo Brasil e abrir um ambiente melhor para investimentos. Nós temos uma crença de que isso é possível, mas é preciso a gente trabalhar rápido, porque o mundo não nos espera.”

O presidente da Abit destaca ainda que, lá fora, a China domina todos os níveis de tecnologia e já ocupa um espaço importante no mercado têxtil brasileiro. “Virou a fábrica do mundo”, comenta. Enquanto isso, os Estados Unidos tentam atrair parte dos segmentos industriais para voltar a produzir no país.

“O mundo está se reconfigurando, e a indústria têxtil do Brasil nessa agenda poderá ser um grande ator, porque nós temos matéria-prima, temos investimentos, temos empreendedorismo, temos o trabalhador e temos uma matriz energética limpa. Dizem que o agro é pop e eu digo que o têxtil MPB — Moderno, Produtivo e Brasileiro.” 

No entanto, quando se fala em mercado asiático, especialmente em relação à indústria têxtil, é praticamente impossível não esbarrar nas condições às quais os trabalhadores são submetidos. As vantagens podem ir muito além de questões burocráticas, jurídicas e tributárias. 

Enquanto o agronegócio brasileiro se esforça para oferecer condições exemplares aos trabalhadores, do outro lado do mundo, se espalham denúncias de trabalho análogo à escravidão na indústria. No noroeste da China, por exemplo, empresas do setor são acusadas de aproveitar o trabalho forçado de membros da minoria uigures, uma população perseguida no país. Os relatórios citam servidão, tráfico de seres humanos e genocídio. As fábricas teriam fornecido para marcas como Zara, Bershka e Massimo Dutti. Até mesmo Nike e Adidas, que se preocupam com as condições da produção no campo, também já foram acusadas de se beneficiar da exploração desse grupo étnico nas fábricas.

Leia também: “A lei morreu”, reportagem publicada na Edição 258 da Revista Oeste

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