Em pareceres sigilosos, a Advocacia-Geral da União (AGU) autorizou pagamentos que ultrapassam o teto salarial do funcionalismo público — atualmente fixado em R$ 46,4 mil — para seus próprios integrantes. A apuração é do portal UOL.
Esses recursos provêm de um bônus mensal pago a advogados e procuradores federais, além do salário, conforme uma lei federal de 2016. O nome técnico desse bônus é “honorário de sucumbência”.
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Entre 2017 e 2024, a União repassou R$ 14,4 bilhões ao Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCHA), entidade responsável pela distribuição do bônus. Composto de membros da AGU eleitos pela categoria, o conselho se considera um ente “privado”.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a soma do salário com o bônus não poderia ultrapassar o teto. Contudo, a partir de 2022, o CCHA criou pelo menos quatro subtipos de bônus que excedem o valor do teto — um tipo de “penduricalho” do bônus.
A AGU, por meio de pareceres sigilosos, validou esses pagamentos. Pelo menos um desses documentos foi aprovado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias. Esses pareceres não eram de conhecimento público até o UOL descobrir a existência de quatro deles — embora possa haver outros.
O portal solicitou acesso aos documentos por meio da Lei de Acesso à Informação, mas a AGU negou, sob a alegação de que estavam sob sigilo. No entanto, a reportagem obteve trechos dos pareceres por meio de fontes e consulta a processos judiciais.
Os advogados da AGU responsáveis por assinar os pareceres, assim como aqueles que negaram o acesso, também se beneficiam dos pagamentos fora do teto.

A AGU declarou que os pareceres “têm caráter meramente opinativo e servem, exclusivamente, como subsídio ou fundamento técnico para a adoção de eventual decisão pelo CCHA”.
No entanto, a reportagem identificou um ofício de 2023 que contradiz essa posição, ao afirmar que “não cabe ao CCHA definir se haverá ou não submissão ao teto remuneratório, uma vez que essa avaliação cabe exclusivamente à AGU”.
Quanto ao sigilo, a AGU explicou que a “restrição de acesso” visa a proteger a estratégia extrajudicial adotada pela instituição em um processo no Tribunal de Contas da União (TCU) que investiga a legalidade de parte desses pagamentos fora do teto.
Já o CCHA disse que os pagamentos respeitam o teto remuneratório e que a gestão segue a legislação vigente e decisões do STF.

O UOL identificou quatro tipos de bônus que excedem o teto:
- Gratificação natalina do bônus: um 13º adicional aos honorários, iniciado em 2022, além do 13º salário pago pela União;
- Reembolso de anuidades da OAB: paga em março de 2024, em parcela única, no valor de R$ 12,2 mil;
- Auxílio-saúde do bônus: pagamento mensal de R$ 3 mil para membros ativos e R$ 3,5 mil para aposentados, iniciado em setembro de 2024, em complemento ao benefício de saúde federal;
- Auxílio-alimentação do bônus: pagamento mensal de R$ 393, iniciado em setembro de 2024.
O TCU investiga a legalidade de parte desses pagamentos. Um relatório técnico de abril de 2024 considerou as gratificações natalinas irregulares e recomendou a devolução. O relatório questiona também a ideia de que o bônus seria uma recompensa por produtividade, uma justificativa usada pela AGU.
O relatório do TCU ainda vai a julgamento. Enquanto isso, novos penduricalhos estavam em estudo.
Presidente do CCHA prometeu bônus retroativo antes da eleição
No ano passado, um procurador, então candidato à presidência do CCHA, enviou um e-mail para a categoria chamado “retroativo do rateio extraordinário — um sonho não tão distante”. A sugestão dele era pagar retroativamente o valor que faltou para atingir o teto em anos anteriores.
Hoje, o bônus principal, sem os penduricalhos, corresponde ao que falta para a maioria dos membros da ativa da AGU atingirem o teto. Mas nem sempre foi assim. Nos primeiros anos do bônus, o valor não era suficiente para complementar o salário até o teto.
A ideia do candidato era, então, bancar o que faltou para atingir o teto em anos anteriores. Isso é possível porque, hoje, o CCHA recebe mais recursos da União do que é capaz de distribuir pelas regras atuais.
O procurador Dayvisson de Oliveira foi eleito presidente do CCHA, e logo após o retroativo entrou na pauta da entidade.
A AGU negou o acesso aos documentos pela Lei de Acesso à Informação, mas, em nota, esclareceu que os pareceres defendem a legalidade de pagamentos fora do teto por meio do bônus. O argumento é que o bônus pode ser dividido em pagamento mensal regular, dentro do teto, e verbas indenizatórias, como os “penduricalhos” salariais.

Verbas indenizatórias são um conceito usado na remuneração de funcionários públicos. São os auxílios e as indenizações diversos que ultrapassam o teto — o que se convencionou chamar de penduricalhos.
No entanto, o conceito sempre foi usado em relação à remuneração paga pelo Estado, ou seja, são penduricalhos salariais. O penduricalho de bônus é algo inédito. A lei federal que criou o bônus não previu o pagamento de “verbas indenizatórias” com esse recurso. O STF, ao julgar o tema, também não abriu essa exceção.
AGU autorizou bônus para bancar anuidades da OAB
Em 2023, a AGU considerou legal o uso do bônus para o reembolso de anuidades da OAB, e o CCHA iniciou esse pagamento três meses depois. Outros pareceres também validaram o uso do bônus para o auxílio-saúde e auxílio-alimentação.

“Não vislumbramos óbices jurídicos [empecilhos] ao pagamento”, escreveu uma advogada da União no Parecer nº 17 de dezembro de 2023, da Subconsultoria-Geral da União de Gestão Pública da AGU.
Três meses depois, o CCHA começou a pagar o reembolso da OAB com recursos do bônus. Outros dois pareceres avaliaram não haver problema jurídico na concessão de auxílio-saúde e auxílio-alimentação com o bônus.
“Não ofende a norma-regra do teto remuneratório, constituindo providência constitucional e legalmente válida”, diz o Parecer nº 2 de 2024 da Subconsultoria-Geral da União de Gestão Pública da AGU.
Segundo documento interno do CCHA, de outubro de 2024, esse parecer foi aprovado “pelo advogado-geral da União, que entende ser juridicamente viável o custeio complementar de auxílio à saúde”.
Procurado, Jorge Messias não se manifestou sobre isso. Um email interno do CCHA sugere que os pareceres da AGU foram centrais para a criação dos auxílios.
“A implementação dos auxílios [saúde e alimentação] foi uma das principais demandas da carreira, e com razão”, diz o documento, datado de novembro de 2024. “Os pareceres da AGU estavam prontos desde abril [de 2024].”
CARAMBA‼️
“Em pareceres sigilosos, a AGU (Advocacia-Geral da União) deu aval a pagamentos que extrapolam o teto do funcionalismo — hoje, R$ 46,4 mil — para seus próprios membros.”https://t.co/Geil0XEm8o pic.twitter.com/ur6REsYqzy
— Talita – Mulher Patriota 🇧🇷 (@Tali_Mito22) March 12, 2025
Em relação ao pagamento da gratificação natalina, a AGU disse ao UOL que a medida foi considerada regular em julgamento pela Seção Judiciária de Sinop (MT). Em abril passado, a Associação Nacional dos Advogados Públicos Aposentados (Anape) questionou na Justiça o reembolso de anuidade da OAB, que favoreceu apenas servidores da ativa.
A Anape disse que esse tipo de verba indenizatória deveria ser estabelecida por lei, não por pareceres da AGU e resoluções do CCHA. A organização defende ainda que o pagamento configura burla ao teto do funcionalismo, o que desrespeita a decisão do STF., e que isso abriria brecha para a criação de outras verbas indenizatórias para fugir do teto.
A entidade foi derrotada na primeira e segunda instâncias da Justiça Federal, mas pode recorrer.
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