A ameaça da ‘interpretação’

Era janeiro de 2021 e o general de divisão do Exército Eduardo Pazuello ocupava então o posto de ministro da Saúde do governo Bolsonaro. Dirigindo-se a repórteres em coletiva, ele afirmou que os jornalistas não podem “interpretar” os fatos, apenas noticiá-los. Sua justificativa era que o “povo brasileiro” não havia conferido aos profissionais da imprensa nenhuma “delegação” para “interpretar”.

À época, objetei que Pazuello, querendo nos dizer quem pode ou não interpretar um texto e o que é ou não interpretação, deveria saber que quem diz ao jornalista se e quando ele pode ou não fazer uma apreciação mais subjetiva do que está apresentando não é “o povo” e sim a empresa jornalística privada para a qual ele trabalha. O problema, também pontuei à época, é que, para quem não está fazendo o dever de casa, o fato inconveniente já é, por si só, uma interpretação indevida.

“Interpretação”, porém, não deveria significar “vale tudo”. Os estudiosos de Comunicação Social costumam afirmar que o jornalismo é, por definição, interpretativo, posto que se trata de um trabalho humano de apreensão e exposição dos fatos. Não há circunstância em que a figura humana que serve de intermediário entre os acontecimentos e o público não exerça qualquer efeito sobre o produto chamado “notícia”. Há diferentes formatos, tons, mecanismos pelos quais posso comunicar a informação de que a grama é verde. No entanto, se eu disser que ela é azul porque isso, de algum modo, me convém, não estou “interpretando”. Estou mentindo. Nesse caso, fará justiça aquele que apontar minha falta de ética.

Alexandre de Moraes não é um jornalista, é um ministro do STF. Deveria, porém, observar o mesmo princípio ao exercer seu papel. Por que estabelecemos essas premissas? Porque, em aula inaugural do MBA em defesa da democracia e comunicação digital (seja lá o que for ensinado nesse curso) da Fundação Getúlio Vargas, ele disse aos alunos que “o Direito é interpretação”.

Há algum sentido em que se faça uma comparação entre o juiz e o jornalista. Se existe um ser humano trabalhando com um arcabouço da realidade — no caso do jornalista, os acontecimentos a serem noticiados; no caso do juiz, o crime de que o réu é acusado e o códice legal —, existe uma atividade interpretativa, por haver uma subjetividade intrínseca ao fato de que uma pessoa está agindo e decidindo. Entretanto, o juiz também não pode inconsideradamente dizer que a grama é azul se ela for verde. Ele não pode fingir que uma lei se aplica onde não se aplica, rebelando-se contra o texto proveniente da Constituição ou das decisões parlamentares. Caso contrário, o que se tem é o arbítrio — e, nesse caso, a liberdade ou prisão de uma pessoa podem estar em jogo.

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Foto oficial dos ministros do STF registrada durante a posse de Dino no lugar de Rosa Weber – 22/2/2024 | Foto: Antonio Augusto/SCO/STF

Moraes abandonou mais uma vez a discrição esperada de seu cargo para pregar que as grandes empresas de tecnologia são comparáveis à Companhia das Índias Orientais, buscam lucro e controle sem responsabilidade jurídica e que sua mentalidade se circunscreve ao velho mercantilismo e ao colonialismo. Por isso, ele se adianta em proclamar como liderança intelectual e espiritual do nosso tempo, alguém precisa fazer algo para enfrentá-las. Ou seja, há um cenário social, econômico e político, e, em função da necessidade do enfrentamento a problemas que se supõe existirem nesse cenário, o juiz “interpretaria” o texto para dar conta de resolvê-los — por óbvio, com a solução que ele julgar conveniente.

Nesse sentido, o ministro do STF acrescenta que crimes cometidos através das redes sociais ou gerados por inteligência artificial precisam ser combatidos mediante uma “conscientização dos operadores do Direito” a esse respeito: “Se vier uma nova legislação, ótimo. Mas, se não vier, nós não viveremos um momento de anomia. Basta uma simples interpretação”. Em outras palavras: seria bom que fossem aprovadas leis que estabelecessem claramente o que Moraes acredita que deveria ser estabelecido, criminalizando objetivamente o que ele crê que deveria ser criminalizado. Mas e se não houver? Se não houver, “interpretamos” as leis que existem de modo a fazer com que esteja implícito nelas o que gostaríamos que estivesse — e caso encerrado. É necessário repetir até a exaustão: as questões políticas devem ser resolvidas politicamente, isto é, pelos representantes eleitos pela sociedade. São eles que fazem as leis e definem as condições a serem respeitadas para sua aplicação. Não é a “conscientização dos operadores do Direito”, não é a vontade de uma pessoa, não é a imaginação perigosamente criativa de um togado. Não existe anomia se as forças políticas tomam uma decisão dentro de suas competências, seja a decisão de mover-se nesta ou naquela direção, seja a de não se mover. O que existe ou deve existir é o cumprimento da vontade do legislador e dos seus representados. Cabe a Moraes e seus pares apenas fazer com que ela se cumpra.

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