A história do século XX é unânime em nos apontar que toda experiência política, que defendeu ou praticou a censura oficial — não importando a pureza e altruísmo da desculpa para ela —, descambou, ora cedo, ora tarde, numa ditadura.
Não há “censura do bem”, não há “tirania boa”, muito menos “dose segura de ditadura”. Pierre Vergniaud, político francês girondino, foi um exemplo disso. Inicialmente um apoiador fervoroso da Revolução Francesa e da destituição do monarca Luís XVI, com o passar do tempo, começou a perceber que os radicais jacobinos, que ganharam proeminência política naquela França revolucionária, usaram do poder não para promover a tolerância e a diversidade política, ou quiçá a “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” — como vocacionava o lema da revolta —, mas antes para censurar dissidentes, matar opositores e centralizar o poder sob seus mandos.
A revolução do povo contra o absolutismo viria a ser a criação de um novo absoluto que mataria mais que o antigo — eis a sina de quase todas as revoluções que surgiriam após a francesa. Essa era que os revolucionários franceses criaram, aliás, viria a ser conhecida, literalmente, como “Período de Terror”. Vergniaud, então, foi preso junto com outros girondinos em 2 de junho de 1793, após os jacobinos tomarem o controle da Convenção Nacional sob os mandos de Robespierre. Ele e mais vinte e um outros de sua facção foram condenados à morte e guilhotinados em 31 de outubro de 1793, em Paris; em frente à guilhotina, Vergniaud teria dito: “A Revolução, como Saturno, devora seus próprios filhos”.
Ou seja, não há espaço seguro numa sociedade que prioriza um “autoritarismo comedido” como via de sustentação política de um partido ou ideia. Numa ditadura — ainda que feita sobre as mais sublimes intenções —, a paranoia se instala e a fogueira acaba sendo acesa para todos. Pois os apoiadores de agora, amanhã, devido a um estalo de consciência, um conflito de rodapé ou um minuto de oposição, podem se tornar inimigos viscerais dos autocratas. E a censura — e a própria morte, que outrora era louvada por silenciar meus opositores — num instante histórico pode trocar de mãos e silenciar os meus e a mim.

Nessas horas de jogatinas ideológicas, nas quais a liberdade não passa de discurso sem substância, é que a autonomia individual e o livre arbítrio como éticas fundadoras são colocadas de joelhos embaixo da guilhotina; é nesse instante precioso que a defesa irrestrita e heroica da liberdade se faz necessária por todos. Quando James II, por exemplo, tentou, por meio de um golpe, novamente trazer a monarquia absolutista para a Inglaterra, as câmaras e a população inglesa extirparam o mal totalitário com uma contrarrevolução que depois ficaria conhecida como Revolução Gloriosa — uma das reviravoltas populares e políticas que moldaram nossa visão Ocidental e que fizeram a dita “democracia liberal” uma ideia praticável. É verdade que não estamos passando exatamente por uma revolução aos moldes tradicionais do século XX, estamos antes vivendo uma tomada política das instituições por meio das próprias instituições, mas os meios diferentes não diferem dos resultados de sempre nesse caso, e por isso estamos precisando urgentemente de nossa própria Revolução Gloriosa.
É preciso lembrar sempre, até mesmo aos liberais e conservadores, que a política só é valorosa quando se opõe visceralmente a todo tipo de ditadura e ditador, seja de esquerda ou de direita. E permitam-me: um conservador e um liberal, estruturados sobre a prudência política e os valores tradicionais de liberdade e ordem, jamais poderão ser vocacionados a piriguetes de tiranos e ideologias; não importa se a desculpa do ditador é a família, a igualdade, a democracia ou a nação, qualquer argumento que precisa emudecer e extirpar o contrário para vencer não passa de uma censura, e a censura é a aorta de qualquer ditadura.
Não há argumento para a censura — e a essa altura da humanidade, isso já deveria ser um ponto pacífico na política, mas não é. Se isso não for um valor arraigado na alma e no senso comum do povo brasileiro, da esquerda à direita, estaremos condenados a viver sob esse eterno e sedutor argumento do “autoritarismo necessário” — como defendeu um colunista do jornal Folha de S.Paulo em tempos da pandemia de covid-19. Ora, a democracia não é um jovem confuso da USP que numa aula de psicologia começou a duvidar de sua biologia e se denominar “elu”. Ao contrário, o discurso sem a realidade, para a democracia, não passa de um embuste; não existe democracia identitária, aquela que com o discurso diz defender os direitos individuais e resguardar as instituições, enquanto com o braço de ferro maceta com um juridiquês de latrina as tradições liberais do Ocidente e mata cada autonomia e opinião individual no assombro de qualquer dissidência que o conteste. A democracia deve ser coerente, e não esquizofrênica.
A censura janta seus filhos e entusiastas, e como o mundo dá voltas, eu me sinto no dever de lembrar aqui que, a mesma guilhotina que golpeou o pescoço de Vergniaud, menos de um ano depois caiu sobre o de Robespierre. E, por isso, caros colegas de esquerda e isentões de sempre, lamber com euforia as patas do Leviatã não diminuirá sua fúria e nem garantirá sua misericórdia, e quem diz isso não sou eu, é a história.
Leia também: “O linchamento de Tarcísio”, artigo de J.R. Guzzo publicado na Edição 261 da Revista Oeste
O post A revolução devora seus filhos apareceu primeiro em Revista Oeste.