O Ceifador — uma ficção distópica melhor que muitos clássicos do gênero

Posso dizer que são poucos os livros “pops” de nossos dias que me surpreendem positivamente. No geral, esses tipo de literatura vêm carregados de escritas superficiais, clichês cansativos e tramas piegas. Não raro, esse é um preço a se pagar quando se escreve de forma puramente comercial, sem aquele zelo estético que vai além do que é necessário, quando só o que se quer é cativar olhares juvenis ansiosos por um entretenimento imediato. 

+ Leia mais notícias de Cultura em Oeste

Acredito, entretanto, que é possível sim temperar tudo isso sem deixar um livro pavoneado ou insosso demais. Aliás, aí está o desafio moderno para os escritores profissionais de nossos dias: ser popular e render uma grana boa em vida, atentando-se ao interesse comercial dos leitores e, ao mesmo tempo, criar um texto com a devida complexidade literária que faça do livro algo mais profundo e duradouro.

Nesse sentido, tem um autor que venho lendo há pelo menos um ano e meio e que me surpreendeu positivamente nesse alinhavar de literatura comercial e literatura profunda, trata-se de Neal Shusterman. Norte-americano, roteirista e romancista profissional, Shusterman é um dos conhecidos do meio do entretenimento em Hollywood. Sua escrita é realmente boa, suas tramas originais e instigantes — e seus personagens profundos e memoráveis.

O Ceifador e a saga Scythe

saga scythe
Livros que compõem a saga Scythe | Foto: Divulgação/Editora Seguinte

Já li alguns livros do autor e, atualmente, estou me encaminhando para o final do terceiro livro da saga Scythe, saga essa composta pelos livros O Ceifador, A Nuvem, e O Timbre. Esses são de longe seus principais livros de sucesso, neles acompanhamos Citra e Rowan, jovens que vivem num mundo futurístico e distópico onde a humanidade alcançou a imortalidade, erradicou doenças e solucionou todos os problemas econômicos e sociais por meios tecnológicos, mais especificamente, da inteligência artificial.

No entanto, o preço social da imortalidade — sem controle de natalidade — é o excesso populacional. Para remediar tal aporia, a Nimbo-Cúmulo, a inteligência artificial quase onipotente, onisciente e onipresente que governa o mundo, criou uma organização independente de homens e mulheres chamados a serem “ceifadores” vocacionados. Isto é, indivíduos encarregados de darem fim às vidas dos indivíduos, até então, imortais.

Cá entre nós, extremamente inventivo e original o roteiro. Não tanto pela trama em si, é verdade, mas antes pelo desenvolvimento da narrativa que é dada por Shusterman. Com o tempo, a Ceifa — a referida organização de assassinos/coletores profissionais — se afasta dos princípios quase estoicos de seus fundadores, passando a gestar corrupções e imoralidades em seu meio. E a dita “coleta”, que deveria ser feita de maneira imparcial, resignada e puramente estoica, passa a ser uma espécie de esporte praticado por ideólogos do terror.

Aliás, quando a corrupção é praticada por pessoas em uma instituição com mandados de morte, tudo se torna extremamente sombrio. Os adolescentes, Citra e Rowan, são escolhidos para se tornarem aprendizes de um ceifador da velha guarda, Faraday, um homem sábio e seguidor dos velhos valores da Ceifa, um indivíduo que duvida seriamente que aquela sociedade imortal seja qualquer espécie de “evolução”. Ele até reza para que a humanidade encontre novamente a sua identidade e espírito. Temos aqui, aventura, política, crítica social, até mesmo uma alfinetada clara a Ayn Rand — acredite se quiser —, mas também uma crítica velada ao “progressismo” e ao tecnocentrismo contemporâneo.

Política em destaque

A política tem uma cadeira de destaque na trama, é fato, e claramente o autor traz um tom crítico a muitas ideias, personagens e pautas contemporâneas. Mas a trama futurista, em si, é o ponto forte da série, a projeção de uma humanidade que venceu todos os seus males e colocou no lugar de Deus uma inteligência artificial supostamente inerrante é a junção da velha utopia do séculos 19 e 20 com as pretensões políticas de muitos cientistas de nosso século.

Por isso, a obra é diferenciada num nível mais profundo. Ela é tão boa quanto distopia quanto é como mera ficção futurista: um ambiente original e autêntico. Isso tudo aliado a uma crítica política de fundo bem construída, em um tom distópico bem desenvolvido. Não à toa a Universal comprou os direitos de filmagem do livro O Ceifador. Rumores recentes afirmam que a mesma produtora teria contatado Steven Spielberg para transformar a série Scythe em série de streaming.

Sobre o escritor

Neal Shusterman - autor do livro o ceifador
Neal Shusterman é o autor do livro O Ceifador | Foto: Reprodução/Amazon

Shusterman é escritor de outro bom livro chamado Fragmentados, de novo uma boa ficção científica aliada a uma eficiente crítica política de fundo, mas agora tratando do controle da natalidade por meio do aborto e as saídas políticas e sanitárias possíveis para o esse imbróglio moral. Aliás, diga-se sinceramente, o norte-americano claramente não tem medo de mexer em vespeiros e de cutucar ideologias.

Leia também: “10 vantagens do livro digital”, por Dagomir Marquezi

Com isso, refiro-me tanto ao da direita quanto ao da esquerda, os leões sagrados das ideologias passam mal com Shusterman, pois, com muita elegância roteirística e escrita fluida, ele bate em todos sem se aliar exatamente a ninguém. A força dos livros de Shusterman está exatamente no fato de que eles levantam questões filosóficas e morais bem expostas sem entregar, no entanto, respostas fáceis ou interpretações imediatistas.

Tais questões e análises de Shusterman podem ser lidas de várias formas — como uma crítica ao poder sem limites, à dependência excessiva de tecnologia ou à falta de humanidade em sistemas utópicos. Diferentes leitores podem ver críticas ao progressismo, ao conservadorismo ou a qualquer sistema que se torne rígido demais.

É revigorante encontrar autores que façam o que Shusterman faz nessa sequência de Scythe, ele nos arrebanha na sala e conta-nos uma história envolvente, cutuca as nossas certezas de forma sincera e, ao mesmo tempo, insinuante, e, por fim, acaba a narrativa incomodando e fascinando a todos, independentemente de lados políticos e sensibilidades psicológicas.

O texto do norte-americano amadurece o leitor jovem, pois ele encontra na trama as suscetibilidades humanas e o limite moral do desenvolvimento científico, fazendo com que os leitores questionem até onde um avanço tecnológico é válido se, na mesma medida dos avanços, perdermos aquilo que nos faz humanos. Neal Shusterman não apenas escreve ficção. Ele nos convida a refletir sobre o que significa ser humano. O Ceifador, assim como os demais livros da série, é mais do que um livro distópico — é um espelho filosófico que incomoda e fascina em igual medida.

O post O Ceifador — uma ficção distópica melhor que muitos clássicos do gênero apareceu primeiro em Revista Oeste.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.