As Cabeças de Cérbero, de Gertrude Barrows Bennett — que escreveu sob o pseudônimo Francis Stevens — é uma das obras mais visionárias da dita “ficção especulativa” do início do século XX. Originalmente publicado em forma de série, em 1919, na revista The Thrill Book, e posteriormente, em 1952, em forma de livro pela Polaris Press, esse romance antecipa com notável ousadia e talento temas que se tornariam centrais na literatura distópica anos depois, sendo frequentemente considerado um precursor direto de clássicos como Nós (1924), Admirável Mundo Novo (1932), Kallocaína (1940) e 1984 (1949).
Gertrude Barrows Bennett escreveu sob o nome masculino Francis Stevens por razões tanto comerciais quanto sociais, já que o mercado editorial da época raramente aceitava mulheres como autoras de ficção científica ou fantasia. Durante anos, muitos acreditaram que Francis Stevens era um homem — até que sua verdadeira identidade foi confirmada nos anos 1950 pelo historiador e crítico literário Sam Moskowitz. Gertrude começou a escrever profissionalmente somente após a morte do marido na Primeira Guerra Mundial, quando teve que sustentar a si mesma e à filha com deficiência. Apesar das adversidades, ela conseguiu publicar diversas histórias em revistas entre 1917 e 1923, tornando-se a primeira mulher norte-americana a se destacar e receber críticas altamente positivas na ficção científica. Apesar de sua carreira breve, Bennett deixou uma marca duradoura ao antecipar temas e estruturas que se tornariam centrais na ficção especulativa moderna. Entre as características notáveis de sua escrita está a clareza crítica a temas políticos abordados em suas tramas, não que já não houvessem textos famosos e críticos a ideias e políticas antes de suas obras, mas ela foi precursora do dito “romance crítico”.
Misturando elementos de ficção científica, fantasia sombria e sátira política, Bennett construiu em As Cabeças de Cérbero uma Filadélfia alternativa do ano 2118, governada por um regime totalitário disfarçado sob a fachada de ordem e progresso — ironicamente familiar ao público brasileiro. A entrada nesse mundo alternativo ocorre por meio de um pó misterioso — contido num frasco denominado “Cabeças de Cérbero” — que funciona como uma espécie de portal para uma realidade fantástica, uma espécie de limbo paralelo, uma antessala que subsiste entre a realidade formal e o fantástico simbólico, esse “limbo fantástico”, por sua via, leva à Filadélfia despótica onde a história se desenvolve. Na obra, as críticas sociais e políticas em forma de sátira, as construções dos personagens principais, e o ambiente claustrofóbico típico das literaturas distópicas — além do pujante simbolismo metafísico — formam uma tecitura literária que enobrece e aprofunda o enredo do livro; as referências históricas e filosóficas, por exemplo, são inúmeras e bem inseridas na trama, de modo que o romance se verte uma literatura ao mesmo tempo cult e pop. Sua estrutura literária já é, aliás, a de uma distopia clássica, no entanto, popularizada somente anos depois de seu lançamento com Huxley e Orwell.
Alguns críticos, como Anthony Boucher e J. Francis McComas, falaram que o romance é datado, limitado e raso, apesar de reconhecerem que o texto é “originalmente imaginativo e agudamente satírico”; “raso, “limitado” e principalmente “datado”, na minha opinião, é tudo que a obra realmente não é. Em dias em que as ditaduras contemporâneas se estruturam sob uma retórica de indispensável benesse coletiva e reinterpretação do indivíduo e sua identidade, manutenção de uma “ordem de liberdade” que, na verdade, é o afogamento da real liberdade individual, onde os agentes despóticos se vestem em casulas de virtudes enquanto praticam vícios ditatoriais por meio das instituições, o livro de Bennet assume um caráter bisonhamente profético. Aliás, na obra, a ditadura na Filadélfia de 2118 se formaliza e atua a partir das instituições de Estado, e não por revoluções e ações exteriores, seus agentes são hipócritas e vingativos, usam do aparato policial e jurídico para manterem a população na ignorância e no servilismo cego, e somente eles, os partícipes da burocracia estatal, são considerados pessoas, enquanto a população são apenas números e multidões sem definições sociais.
Quanto à crítica especializada em geral, ela tem sido generosa com a obra. Estudiosos, como o já citado Sam Moskowitz, elogiaram Bennett como a “a maior escritora de ficção científica no período entre Mary Wollstonecraft Shelley e C. L. Moore”, reconhecendo nela uma voz ousada e inovadora, cuja complexidade literária e imaginação sombria abriram caminho para autoras contemporâneas. Groff Conklin, antologista, editor e crítico literário norte-americano, chamou As cabeças de Cérbero de “talvez a primeira fantasia científica a usar a ideia de uma linha do tempo alternativa ou de mundos paralelos”, ideia que posteriormente foi amplamente explorada em todo universo fantástico, inclusive em produções cinematográficas; o editor, Everett F. Bleiler, por sua vez, descreveu o romance como “uma obra altamente imaginativa, um dos clássicos iniciais da ficção fantástica”.
Com uma narrativa inteligente, instigante, com personagens multifacetados e um estilo maduro, As Cabeças de Cerbero permanece não apenas como uma curiosidade literária, ou um clássico menor, mas antes como uma obra fundamental para se entender o desenvolvimento do pensamento distópico na literatura ocidental, e mais: entender o processo de crítica política por meio da literatura ficcional. Pela primeira vez publicada em solo brasileiro, eu tive a honra de encontrar o livro da autora norte-americana enquanto escutava um podcast gringo sobre literatura, o li em menos de uma semana e tive a certeza de que ele merecia ser publicado para o amplo público tupiniquim; ofereci a obra à LVM que, sob seu selo novo de ficção, Tirolês, o lança agora ao amplo público nacional. Espero que o leitor se sinta tão entusiasmado e instigado a mergulhar no mundo distópico de Bennett como eu me senti desde o primeiro capítulo.
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