Esta semana viralizaram inúmeros vídeos do autointitulado “pastor” e “profeta” Miguel Oliveira, de 15 anos; neles os mais absurdos e quase inacreditáveis “profetismos” e perturbações ocorrem sob os olhares — ora piedosos, ora atônitos — de fiéis protestantes. O Conselho Tutelar de Carapicuíba (SP) interveio e, segundo notícia do portal Metrópoles, permitiu que ele continue pregando em igrejas, só que sem a exposição das palestras em redes sociais. Entre as exigências do órgão, inclui-se o retorno imediato do garoto às aulas presenciais; e, ao que parece, o Ministério Público, depois de receber denúncias de “exploração da fé alheia” pelo adolescente, deve investigar os relatos mais a fundo.
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Para aqueles que estão acompanhando as notícias, não é difícil notar no garoto uma espécie de transe bisonho e constante durante as pregações, aliado a um domínio real da bolha neopentecostal no qual ele está inserido. Entre pedidos ostensivos de doação em troca por bênçãos (“Quero agora quatro pessoas aqui no altar para doar R$ 1 mil. A velocidade com que você vem é a velocidade com que o milagre será realizado”) e orações que misturam sílabas aleatórias e palavras estrangeiras ditas de forma repetitiva e emocionalmente desequilibradas, como “the king, the power”, o garoto assume uma espécie de encenação digna de risos e assombro.
O garoto já afirmou em pregação que estava curando a leucemia de uma fiel, ao mesmo tempo que rasgava o laudo da paciente ante os crentes presentes; e em outra ocasião, discorrendo em meio às afobações típicas de um pentecostalismo histriônico, diz que todos devem ter um pastor-homem e não somente Jesus como pastor: “Tire da sua ideia: ‘O Senhor é meu pastor e nada me faltará’. Você precisa ter pastor, irmão. ‘Ah, meu pastor é Jesus’. Tá amarrado”… Em um podcast, posteriormente, ele disse que essa afirmação foi tirada de contexto, ainda que na mesma fala reafirmasse o que disse. Bom, será que há um “contexto” teologicamente aceitável que explique esse “corte”?
Esses são apenas alguns episódios que podem ser facilmente encontrados no Instagram e demais redes e mostram as absurdidades — teológicas e psicológicas — de Miguel. Como cristão, minha sensação sincera é de vergonha alheia. E olha que nem protestante eu sou! O que está exposto nas redes, sobre as atuações do garoto, suas palavras e autoafirmações, é digno de seita misturada à rouquidão psicopatológica. E, acreditem se quiserem, eu não escrevo isso com bile de crítica religiosa, revanchismo eclesiástico ou qualquer tipo de ataque pessoal, pois obviamente o Miguel “profeta” é diretamente fruto do ambiente e das convicções daqueles que o nortearam até aqui. Ninguém, com 15 anos, se torna um pregador performático do nada. Com certeza não é de hoje que ele vive nesse pandemônio pseudorreligioso — ou é? De quem é a culpa desse universo paralelo de insanidades vertidas em “profecias” e bênçãos de prosperidade? Obviamente que não é culpa de Miguel essa fé afetada que não carece somente de uma teologia minimamente digna e séria, mas antes do mais basal bom senso e centralidade emocional.
Esta condição do adolescente foi alimentada por milhares, quiçá, milhões de fiéis e curiosos que fizeram dele uma mistura de profeta mirim e diversão de redes; trata-se de um movimento sociológico e religioso que se retroalimenta, pondo no vácuo deixado pelo autocontrole emocional e sanidade psicológica dos religiosos, espaço para o surgimento de pessoas aptas em manipulação de massa. Como disse Gustave Le Bon no capítulo dois de seu clássico A psicologia das massas: “As massas são guiadas menos pela razão do que pelas imagens e palavras que lhes excitam a imaginação.”

Tal assinatura neopentecostal recorta não só as inúmeras denominações protestantes, mas também o catolicismo em sua vertente carismática, que apesar de ser costumeiramente mais amena, não raro cai em bizarrices pseudoteológicas como as vistas em Miguel e tantos outros pregadores neopentecostais.
Aliás, o foco midiático atual está no adolescente paulista, todavia, essa histeria em massa, que nada tem a ver com a própria Bíblia e o Cristo atestado por ela, é um caos generalizado sem dono próprio, mas com milhões de propagadores constantes. Sempre me pareceu que a fé cristã tradicional, seja de origem protestante, católica ou ortodoxa, baseou-se num profundo aporte intelectual e sensato, onde as emoções eram parte do combo humano, mas não seu motor único. Basta dar uma olhada nos escritos dos primeiros cristãos, alguns deles, como Clemente de Roma, Inácio de Antioquia e Policarpo de Esmirna, que conviveram com os próprios apóstolos. Eles eram homens equilibrados, de uma fé psicológica e emocionalmente centrada, escreviam tratados de aclaramento doutrinal a partir de uma teologia racional e profundamente filosófica, suas pregações eram reflexões vigorosas, mas não perturbadas; eles não buscavam o arrebanhamento emotivo, econômico ou profetista, mas antes a conversão moral e transcendente dos homens através de uma adesão completa por meio da razão e da fé. Acredito que as igrejas neopentecostais, como um todo, devem rever suas teologias e suas ações ministeriais, pois no afã de uma busca emocional acalorada, baseada somente em sensações e epifanias, pode acabar gerando indivíduos que se aferram a um solo de pouca ou nenhuma racionalidade, arrogando para si num processo de delírio, poderes divinos e, quando não, o próprio senhorio de Jesus.
Miguel, por fim, é mais vítima do que culpado ante um sistema religioso que pouco ou nada preza pela saúde psicológica e teológica de seus fiéis, tornando-os, por vezes, fonte de renda constante através de ofertas obtidas mediante extorsão religiosa; e pior, criando coletivos mentalmente dominados e com pouca ou nenhuma clareza intelectual para julgar o que é real ou não, o que é charlatanismo e o que é pregação evangélica, de fato. O adolescente deve ser cuidado e assistido, mais do que julgado e punido; não com o objetivo de retirar dele o que possa ser uma genuína — ainda que distorcida — fé em Cristo, mas, antes, para devolver a ele a serenidade e centralidade de um cristianismo não psicologicamente afetado.
Acredito que quem deve julgar esse mérito — a priori — não é o Ministério Público, mas a própria sensatez da comunidade cristã evangélica. O cérebro sensato é uma arma natural do homem contra dominâncias psicológicas e charlatões. Dos católicos aos evangélicos, há de se prezar sempre pela clareza intelectual de seus líderes e, por extensão, os fiéis devem sempre se opor a quaisquer rastros de exploração econômica e ideológica por parte de seus pastores. O senso crítico é um presente divino às almas racionais, e usá-lo está no pacote dos deveres morais que o próprio criador nos garante. Espero que Miguel encontre o Cristo verdadeiro, aquele que é “manso e humilde de coração”, e não um “cristo” inventado pelo homem, o que busca bênçãos em lucros, o que causa histerias em massas e afasta os fiéis da verdadeira paz psicológica e de espírito.
O post ‘The king, the power’: a histeria de um cristianismo emocionalmente desequilibrado apareceu primeiro em Revista Oeste.