Ainda Estou Aqui e as ditaduras que persistem nas periferias

Feriado da Proclamação da República. O shopping na periferia da zona norte de São Paulo (SP) estava cheio de famílias. Eu e a minha ali entre as demais, aguardando para ver um filme também sobre família: “Ainda Estou Aqui”, do diretor Walter Salles

Em determinada cena, quando Eunice Paiva pergunta a um amigo o que poderia acontecer aos desaparecidos políticos, ele responde que alguns poderiam ser jogados em alto-mar, outros enterrados em valas clandestinas como indigentes. Eu quase pulei da cadeira do cinema para entrar na tela e dizer que aqui em Perus, periferia paulistana, uma dessas valas fora construída na década de 1970, no Cemitério Dom Bosco, e suas reminiscências continuam aqui.

Neste cemitério, onde estão as lápides de todos os meus familiares, há uma placa vermelha enorme com letras brancas que dizem: “Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado Policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.

Nasci e ainda moro em Perus. Cresci indo à missa do Dia de Finados em homenagem às vítimas enterradas na vala. Segundo o CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense), das 1.049 ossadas encontradas no espaço, cinco foram identificadas, e realizada a investigação ante mortem junto a 42 famílias de vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura. As demais eram de jovens executados pelo Esquadrão da Morte – grupos de policiais envolvidos com a criminalidade e práticas de tortura – ou de vítimas da epidemia de meningite que assolava os territórios periféricos. Todas são vítimas do período.

Meu tio era sepultador e, sem querer ou saber, colaborou tanto na construção da vala, quanto em sua abertura e descoberta em 1992, durante o mandato de Luiza Erundina como prefeita da capital paulista. Uma pá que ele utilizava no cemitério foi usada há alguns anos pelo Grupo Pandora de Teatro no espetáculo “Comum“, que rodou diversas escolas contando essa história. Na Comunidade Cultural Quilombaque, jovens negros reconstroem os passos desse episódio com as trilhas da memória “Ditadura Nunca Mais” e com a ação de artistas que pintaram os muros do cemitério a partir do olhar periférico para a ditadura no país. Atualmente, há uma comissão formada por familiares de vítimas e moradores que reivindica o Memorial da Vala no local.

Mas falar sobre isso com as gerações mais velhas ainda é um tabu no bairro. Em 2020, publiquei nesta Folha uma reportagem ouvindo os moradores sobre o período. O silêncio e o medo de represálias são constantes. A ditadura afetou as periferias de modos diferentes daqueles que acometeram as classes média e alta, mas com paralelos comuns. A blitz policial que abre o filme é retrato de algo que acontece com pessoas negras e periféricas todos os dias ainda hoje. Os relatos das periferias contam de uma presença militar maciça e de ameaças constantes pelo simples fato de estar à noite na rua. Ou, então, não portar a carteira de trabalho assinada que comprovasse sua cidadania ? mas quem conseguia trabalhos formais naquela época?
Leia mais (11/19/2024 – 21h24)

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