Na sala da casa do israelense Ronen Regev, há uma ampla prateleira encostada na parede. Em uma das estantes, se destaca o retrato de um soldado, rosto firme, traços fortes e olhar para o infinito. Ao lado da foto, duas longas balas de fuzil estão perfiladas, em pé. Uma à esquerda, outra à direita.
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A montagem decorativa homenageia o irmão de Ronen, Haim Ben-Yona e Wilmush, heroi de guerra, morto aos 22 anos, na área do Canal de Suez durante operação especial, em 1969. Haim era considerado uma referência em sua unidade.
O retrato e as balas se eternizaram naquela prateleira. Há anos permanecem lá. São levados nas mudanças de casa e recolocados em seu local de moradia. Mais do que o luto, simbolizam a luta, a solidariedade, a busca de um sentido.
Demonstram que Haim, de alguma maneira, deixou um exemplo que permanecerá para sempre com a família. Em forma de dor, mas também de orgulho e de amor.
A isso tudo, dá-se o nome de saudade.
Ronen convive há décadas com esta “cicatriz”, já transformada numa companheira doce e triste. Até hoje ele realiza cerimônias de Yizkor (prece especial para os mortos) para o irmão. Ele está angustiado com a atual guerra. Sentiu na pele a dor que pode resultar do sacrifício por um objetivo, pela identidade de uma nação. O 7 de outubro o abalou. Tem feito desabafos constantes pela libertação dos reféns.
Homem íntegro e generoso pai de família, Ronen ama a paz. Faz trilhas, com a mulher, com a mãe, com os filhos e os netos, às margens do Rio Yahiam. Encanta-se com a beleza do pôr do sol na praia. Fotografa detalhes das flores em passeios. Emociona-se ao reencontrar paisagens da infância.
Mesmo assim, ele tem-se mostrado cansado. Ele, que também foi um militar fiel, bravo e abnegado, sentiu que, nestes mais de cinquenta anos desde sua perda, a situação de Israel continua tensa. Apesar dos bosques e das trilhas.
O que parecia uma calmaria até estranha se mostrou uma ilusão no momento em que o Hamas realizou as brutalidades de 7 de outubro.
A partir de então, todos conhecem a história e o labirinto do qual Israel agora busca sair. Depois de 579 dias e cerca de 1,2 mil pessoas mortas no ataque do grupo terrorista, os combates prosseguem. Mais de 600 militares israelenses morreram, assim como milhares do lado palestino, grande parte do Hamas.
Envolvido em acusações e pressionado, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu – outro que perdeu um irmão em combate nos anos 1970 – determinou a ampliação da incursão. Isso diante do impasse para a continuidade do cessar-fogo do início do ano.
Ronen, então, não conteve seu desabafo. E conclamou, demonstrando o repúdio ao atual governo, que os soldados não mais obedecessem às ordens do governo para intensificar os combates em Gaza.
“Eu nunca imaginei que chegaria ao ponto de escrever um post como este, mas infelizmente a realidade desses dias loucos exige isso”, declarou Ronen, nas redes sociais.
“Venho, por meio deste, fazer um apelo a todos aqueles que receberam a 8ª Ordem, que é a favor da ‘expansão da luta em Gaza’ – para que se recusem a cumprir.”
Segundo Ronen, foi o próprio governo o responsável pelo desastre de 7 de outubro. E agora a gestão Netanyahu, para ele, conduz Israel a outro grande desastre.
Este tipo de posição, seguida neste momento por uma parcela da população, é inédito na história de Israel. Indica que o país passa por seu momento mais delicado. Mas pensar desta maneira, nada mais é do que dar, ainda que involuntariamente, as armas para os inimigos.
Por mais que o governo de Netanyahu seja criticado – e mesmo que as críticas façam sentido para muitos – a melhor maneira de ir contra ele é o retirando por meios democráticos. Isso, até agora, a oposição não conseguiu.
Mesmo com as passeatas e com os protestos. Benny Gantz, ex-chefe das Forças Armadas e líder do Partido da União Nacional, de oposição, há anos tenta se eleger, sem sucesso.
Netanyahu, em aliança com partidos ortodoxos, não perde a maioria no Parlamento.
Os opositores não têm conseguido passar a necessária segurança para a população. Enquanto não surge esta figura opositora que aglutine, qualquer iniciativa de boicote ao governo e, mais do que isso, às Forças Armadas, é uma ameaça à sobrevivência de Israel.
Várias frentes militares em Israel
A guerra em Gaza é apenas uma das frentes. Há outras maiores, como a do Irã, grande apoiador dos grupos terroristas que atacam Israel. Como ficariam as Forças de Defesa de Israel (FDI) diante de um ataque do Irã, caso se recusassem a entrar em Gaza?
A fragmentação de uma parte significaria a vulnerabilidade das FDI por inteiro. Um soldado que não aderiu ao boicote teria dificuldades de lutar ao lado de outro que aderiu. E por que este decidiu aderir? Qual critério adotou para escolher de qual luta ele participa? Se ele se nega a entrar em uma, não estará com o moral enfraquecido para entrar em outra maior?
Até mesmo Moshe Dayan, grande general israelense, teve, na condição de Ministro da Defesa, de aceitar a decisão de David Elazar, chefe do Comando Norte, de penetrar no Golã para conquistar territórios e iniciar um impasse com a Síria até hoje sem solução.
Dayan, um leão político e sempre com opositores, sabia que uma fissura militar em Israel tendia a ser fatal. Um operador do sistema de defesa não confiará no colega que defendeu a deserção de soldados. E o Iron Dome, com isso, poderá ficar lento para se defender de mísseis dos houthis, do Hezbollah, do Irã, dentro das seis frentes contra as quais Israel luta.
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A questão dos reféns, pelo que os fatos têm demonstrado, tem mais relação com um cessar-fogo do que com os combates.
Israel depende da união das FDI, independentemente de questões políticas. O próprio Ben-Gurion, por um motivo inverso, o de evitar a guerra, teve de se voltar contra insurgentes que trouxeram armas no navio Altalena, em 1948. Aquela experiência mostrou o quanto é perigosa uma divisão militar em um momento delicado.
As frentes de Israel hoje são muitas. As internas não podem ser mais uma delas. As balas nas prateleiras dos lares simbolizam a dolorosa marca das guerras. Mas, para que elas acabem, Israel precisa continuar a existir.
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